Há pouco tempo, conclui
um curso de extensão de Análise do Discurso e Leitura. O curso trouxe meus
primeiros contatos com esses dispositivos de análise com base, principalmente,
na escola francesa que começou com o nosso querido Michel Péuchex nos anos 60.
Na conclusão do
curso foi proposto um trabalho de análise de um texto de escolha dos alunos. Eu
escolhi Inútil da banda Ultraje Á Rigor.
Segue abaixo o meu
texto de conclusão do curso:
PS: Note como,
mesmo sendo de 1985, a música apresenta um teor “atual” impressionante – e olha
que eu elaborei a análise nas vésperas das eleições presidenciais de outubro.
Este estudo trata
de exercitar a leitura através de uma análise de compreensão, interpretação e
efeitos de sentido da letra da música “Inútil”
de autoria de Roger Moreira e amplamente conhecida na versão gravada pela banda
“Ultraje a Rigor”, lançada
originalmente no álbum “Nós Vamos Invadir
Sua Praia” (1985).
Para melhor
explorar as possiblidades de sentidos no texto de Roger Moreira, faz-se
necessário o resgate de alguns detalhes através de um breve contexto histórico:
- A década de 80 foi marcada pelo movimento civil “Diretas Já” no
Brasil, com seu auge em 1984, culminando no fim do regime ditatorial militar e o
reestabelecimento democrático através das eleições indiretas que elegeram
Tancredo Neves em 1985;
- Essa década também ficou historicamente conhecida como “A Década Perdida”;
- Surgiu a chamada “Geração 80”
- termo que se refere à invasão das bandas de Rock, tornando-se o principal fenômeno
artístico desse período e dominando as atenções midiáticas e populares por toda
a década.
- Inútil se tornou grande
sucesso de vendas e rádio em 1984 e tornou-se rapidamente canção hino das
passeatas do movimento “Diretas Já” que tomou todo o país;
- Inútil chegou a ser
eleita umas das dez melhores músicas brasileiras do século XX e ainda hoje é
muito cultuada.
Texto Original:
INÚTIL
Autoria: Roger Moreira
A gente não sabemos
Escolher presidente
A gente não sabemos
Tomar conta da gente
A gente não sabemos
Nem escovar os dente
Tem gringo pensando
Que nóis é indigente
Escolher presidente
A gente não sabemos
Tomar conta da gente
A gente não sabemos
Nem escovar os dente
Tem gringo pensando
Que nóis é indigente
"Inúteu"!
A gente somos "inúteu"!
A gente somos "inúteu"!
A gente faz carro
E não sabe guiar
A gente faz trilho
E não tem trem prá botar
A gente faz filho
E não consegue criar
A gente pede grana
E não consegue pagar
E não sabe guiar
A gente faz trilho
E não tem trem prá botar
A gente faz filho
E não consegue criar
A gente pede grana
E não consegue pagar
"Inúteu"!
A gente somos "inúteu"!
A gente somos "inúteu"!
A gente faz música
E não consegue cantar
A gente escreve livro
E não consegue publicar
A gente escreve peça
E não consegue encenar
A gente joga bola
E não consegue ganhar
"Inúteu"!
A gente somos "inúteu"!
"Inúteu"!
A gente somos "inúteu"!
"Inúteu"!
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”A gente não
sabemos
Escolher presidente
A gente não sabemos
Tomar conta da gente”
Escolher presidente
A gente não sabemos
Tomar conta da gente”
De início, o
sujeito/narrador estabelece propositalmente uma proposta expressiva clara, ao
adotar uma linguagem gramaticalmente incorreta e coloquial que vai predominar
por toda o texto. Trata-se de, além de estilo, uma tentativa de enfatizar um
discurso informal, onde o narrador se coloca como um indivíduo ignorante e não
escolarizado, que não se importa por se expressar “incorretamente”, se mostrando
preguiçoso e passivo diante dos acontecimentos ao seu redor. O autor estabelece
assim um formato de texto que traz um misto das funções poética e
metalinguística e se colocando também como personagem/narrador autodiegético.
“A
gente não sabemos escolher presidente” é uma referência ao sentimento de insegurança dos brasileiros da época,
que, após as marcantes passeatas e manifestações da “Diretas Já” com seu auge em 1984, viviam a expectativa da retomada
democrática para, enfim, ter seu primeiro presidente eleito por voto popular em
décadas. Havia também uma frustação de que, de início, ele seria eleito de
forma indireta - através de um colégio eleitoral -, e não por voto direto.
“A
gente não sabemos tomar conta da gente” complementa a sentença anterior chamando a atenção
para o fato dos brasileiros, como um todo, serem incapazes de se autogerir como
pátria. Essa afirmação encontra sentido ao analisarmos que o Brasil se
encontrava politicamente, economicamente e socialmente cada vez mais caótico.
“A gente não sabemos
Nem escovar os dente
Tem gringo pensando
Que nóis é indigente”
Nem escovar os dente
Tem gringo pensando
Que nóis é indigente”
“A gente não sabemos nem escovar os dente”.
Essa frase faz referência à polêmica causada por uma declaração do então
presidente militar João Figueiredo: “Um
povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar”. Por
sua vez, o presidente Figueiredo cunha essa frase sob o conhecimento público de
que, na época, havia uma alta incidência de cáries entre os brasileiros. Fato
que fez o governo investir em campanhas publicitárias por uma melhor escovação
dos dentes por parte da população.
“A gente faz carro
E não sabe guiar
A gente faz trilho
E não tem trem pra botar”
E não sabe guiar
A gente faz trilho
E não tem trem pra botar”
“A gente faz carro e não consegue guiar”. Aqui,
nos deparamos com uma possível referência às más condições de estradas e às
vias ferroviárias pelos país (fato que se estende aos tempos atuais) e,
finalmente, suas respectivas inviabilidades. Pode-se ainda estender essa
referência a ampla incapacidade financeira dos cidadãos adquirirem o carro
próprio – fabricado no Brasil ou não - e, assim, utilizar essas vias
“inexistentes”.
“A gente faz filho
E não consegue criar”
Nesses versos, o autor ironiza a alta taxa de natalidade da época e a incapacidade da família média brasileira de alimentar-se e educar seus filhos e, em seguida, cita o crescente endividamento externo. Esses problemas eram todos inter-relacionados.
E não consegue criar”
Nesses versos, o autor ironiza a alta taxa de natalidade da época e a incapacidade da família média brasileira de alimentar-se e educar seus filhos e, em seguida, cita o crescente endividamento externo. Esses problemas eram todos inter-relacionados.
“A gente pede grana
E não consegue pagar”
E não consegue pagar”
Após anos de má
administração das políticas econômicas da gestão militar, o Brasil chegava à
metade dos anos 80 com péssimos índices financeiros, com declínios anuais do
PIB e com baixa renda “per capta” da população. O reflexo destas oscilações
passou a refletir na taxa de inflação, que já começava a se tornar uma
realidade negativa que atingiria seu auge nos anos 90.
Nesse período, o
governo passou por uma sequência de anos em déficit financeiro, chegando a
pagar praticamente apenas juros das dívidas externas em alguns anos. Realidade
essa que fazia o governo voltar frequentemente a recorrer à empréstimos de
altos valores junto a outros países (FMI), acumulando ainda mais essa dívida.
Os analistas
econômicos frequentemente se referem à década de 80 também como “A Década Perdida”. Esse termo é usado amplamente
pra se referir aos anos 80 como um todo, mas também especificamente às
consequências históricas em decorrência atraso econômico desse período.
“A gente faz música
E não consegue cantar
A gente escreve livro
E não consegue publicar
A gente escreve peça
E não consegue encenar”
E não consegue cantar
A gente escreve livro
E não consegue publicar
A gente escreve peça
E não consegue encenar”
Este recorte de
estrofe constrói uma clara ironia sobre as censuras às obras artísticas nos
anos anteriores, assim como na época ainda se repetia, mesmo que de forma mais
branda. O quinto decreto do governo
militar (o AI-5) foi emitido em 1964, entrando em vigor a partir de dezembro de
1968, e durou até 1978. Ainda hoje, o maior símbolo de repressão da era da
ditadura militar, o AI-5 concedia amplos poderes aos militares para perseguirem
e punirem seus opositores. Nesse período a governo aplicou uma política
agressiva de censura nas artes e nos meios de comunicação, monitorando todas as
formas de publicação e expressão, e chegando frequentemente a torturarem e
banirem cidadãos do país.
“A gente joga bola
E não consegue ganhar”
E não consegue ganhar”
Em 1985 ainda havia
o sentimento público de frustação pela campanha da Seleção Brasileira de
Futebol na Copa do Mundo de 1982, na Espanha, e o já incômodo hiato de anos sem
títulos. Na copa da Espanha, em 82, essa frustação foi acentuada não apenas
pelo fracasso diante da derrota para a seleção italiana, mas pelo fato de, pela
primeira vez em anos, a seleção conseguir reunir uma geração que encantou o
mundo com o chamado “retorno do futebol
arte”. O time de 82, liderado por craques como Zico e Sócrates e sob o
comando técnico do moderno treinador Telê Santana, resgatou um otimismo popular
que contaminou a apaixonada torcida brasileira. Esse otimismo acabou se
convertendo em uma comoção nacional diante da derrota para os italianos num
jogo icônico e lembrado ainda hoje.
Em 1984, a banda Ultraje A Rigor lançou o álbum “Nós Vamos Invadir Sua Praia”, que se
tornou o principal sucesso daquele ano e tendo como Inútil seu principal sucesso. O álbum acabou se tornando o trabalho
mais bem-sucedido da banda, vendendo milhares de cópias e tendo quase todas as
músicas como grandes sucessos. “Inútil”
acabou sendo uma obra musical de criatividade exemplar, retratando de forma original
todo um sentimento nacional da época.
Numa perspectiva
atual - em tempos de turbulências ideológicas e políticas -, pode-se também
constatar que essa canção se apresenta hoje com um aspecto atual e atemporal ímpares.
Através de sua linguagem irônica e refinada, o discurso - originalmente preso a
um contexto histórico -, consegue criar uma atmosfera de redundância semântica
e polissêmica, ampliando assim o seu caráter metalinguístico, bem como seu
valor artístico e social.